13 de outubro de 2011

Mudança de ponto de vista nas narrativas - parte II


ontinuando o assunto de "mudança das narrativas" (ou de pontos de vista), vamos agora a uma explicação mais profunda sobre o assunto.
O grande segredo por trás das mudanças de ponto de vista é que a forma ideal de escrever um livro não é na ordem que o trabalho final será apresentado ao leitor. A explicação para isso é simples: por menos que você demore para escrever um livro, quando você termina o seu estilo já é diferente de quando você começou.  Obviamente que os diferentes tratamentos por que passa o livro diminuem esta diferença, mas ainda assim ela pode ficar perceptível se você escrever na ordem sequencial de leitura.
Como evitar isso? Como é possível escrever um livro fora da ordem sequencial de leitura?
Aí é que está outro "grande segredo", muito pouco conhecido dos escritores nacionais mas amplamente usado no mundo anglo-saxão: a abordagem top-down, que guia o autor desde uma frase estruturada (a premissa) até a obra completa (vejam mais detalhes nos links no post anterior sobre este assunto).
Bem, uma vez definida a premissa do livro, montada a estrutura da narrativa, escolhidas as cenas principais, escrito um "resumão" (toda sua história em menos de 10 páginas) e produzida a lista de cenas (apenas uma curta descrição no que vai acontecer em cada cena), é o momento de detalhar cada cena do livro.
"Uma cena só pode ter um objetivo, precisa acontecer em apenas local, e deve ser descrita por apenas um ponto de vista."
As cenas do livro devem possuir uma estrutura bem definida.  De maneira simplificada, uma cena deve ter um protagonista (da cena, não do livro), um objetivo a ser atingido por ele, um obstáculo, e uma solução - que até a parte final do livro geralmente coloca o protagonista em uma situação pior que antes, apesar de superar aquele obstáculo específico.  Uma segunda parte da cena é a "sequela", o aprendizado do personagem com aquele obstáculo, que geralmente tem uma reflexão, uma decisão a ser tomada e o encaminhamento da decisão - que leva à próxima cena.
(Parece abstrato ou irreal demais? Bom, podem acreditar, mas
é cena a cena que são construídos TODOS os romances mega-bestsellers que invadem o mercado todos os anos, vendendo milhões de cópias cada. Há livros no mercado americano especificamente detalhando as cenas de livros famosos, como "O Código da Vinci", para que autores novos conheçam o processo de trabalho de escritores profissionais).
Um detalhe essencial da cena - e daí o motivo de eu entrar neste assunto aqui - é que uma cena acontece em apenas um local, tem apenas um objetivo e um protagonista, e possui apenas um ponto de vista. Mudou o ponto de vista (PDV), mudou a cena. 
Assim, mesmo que você não siga esta estrutura para cada cena, para não ter dificuldades com a mudança de pontos de vista, é importante ter uma lista de cenas pré-definidas, com o PDV e o que acontece em cada cena; assim você tem a liberdade - e deve exercê-la - de escrever primeiramente as cenas de um PDV, depois as de outro.  Começando pelas cenas com PDV do protagonista do livro, você terminará com boa parte da obra já escrita, o que faz esta abordagem ser menos complicada do que parece. E, na verdade, escrever o livro assim não só não é complicado, mas também ajuda em muito a aumentar a consistência da obra, e torna quase impossível você errar, ou ter dificuldade, com a mudança de PDV.
Por fim, um esclarecimento: o "PDV literário" não é bem o PDV que aprendemos na escola. Os tipos são mais ou menos os mesmos: Primeira Pessoa restrita, Segunda Pessoa, Terceira Pessoa Onisciente, Terceira Pessoa Restrita.  O detalhe é que aqui falamos de PDV, não de pessoa de conjugação verbal.  Assim, no PDV de primeira pessoa quem conta a história é o protagonista da cena, na segunda pessoa (não é "tu"), um segundo personagem na cena, e na terceira pessoa é um narrador externo à história. Um detalhe essencial é que se o PDV é de um personagem em cena, ou de uma terceira pessoa restrita, não podemos contar o que o PDV não vê.  Por exemplo, se o PDV é de uma pessoa que está olhando pela janela, na cena não podemos descrever uma pessoa que entra pela porta do lado oposto da sala; no máximo falar do som da porta abrindo (afinal, o PDV está olhando para fora da janela, não para dentro do quarto).
Bom, este assunto dá para duas horas de palestra, isso se evitarmos entrar em detalhes (acreditem - já testei!), mas espero pelo menos ter dado algumas ideias a vocês. Como é possível aprofundar o assunto em diferentes direções, espero seus comentários para conhecer suas dúvidas.
Obrigado, e até a próxima!

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5 comentários:

Gethbond disse...

Muito bom!
O domínio da técnica é um assunto que sempre me deixa tenso. Principalmente quando leio em livros de fora o quanto autores profissionais dão atenção a coisas como ritmo e fluidez do texto. Coisas que, como raramente (eu diria nunca) discutidos por brasileiros, fica muito difícil de se ter uma os ideia da coisa em nosso idioma.
Quanto ao PDV eu tenho muitos problemas por começar com um e lá para frente deixar escapulir algo que ele nao poderia saber (por exemplo). E, embora revisemos nossos textos, eu adoro misturar tempos verbais, o que deixa a coisa mais confusa.
Quanto à estrutura do texto, adoro usar o Contour ou o Dramatica Pro, que me dão um norte e me auxiliam a construir a história e seus momentos. Mas confesso que escrever cenas nao é meu forte.

Obrigado pela ajuda.
Renato Gondim
@polineura
polimnianeurastenica.wordpress.com
crgondim.wordpress.com

Anônimo disse...

"adoro misturar tempos verbais" ..essa é uma característica minha também. Não vejo problema com as mudanças de ponto de vista em si, apenas gostaria de conseguir fazê-las mais "suaves". ..e misturando isso com a mudança de tempos verbais então, é uma loucura. .. É como se a narrativa estivesse transitando entre o passado e o presente do personagem, ou em qualquer ponto entre o momento da cena e a narrativa. ..e então, o ponto de vista muda, e outro personagem entra na dança... ..nesse momento, entra a minha dificuldade, adequar o momento da narrativa (tempo verbal e narrador), com o ponto de vista do personagem certo, sem confundir o leitor... hehehehe... Quando a gente encarna um personagem, é tranquilo... o problema, é quando saio do personagem e afasto o foco, para costurar a cena da forma mais "adequada"... ou inserir o ponto de vista de outro, que eu julgue naquela cena necessáro. :-) Espero não me fazer tão confuso... heheheh

Alexandre Lobão disse...

É, Renato e Lance, a teoria é simples, mas a prática... bem, demanda prática!
A regra básica é bem essa que vocês falaram de passagem: não confundir o leitor.
Depois disso, ou até para garantir isso, o ideal é exercitar a coerência. Lembrem que o tempo da ação NÃO é o tempo verbal. Assim, quando narro que "O vulto olhava pela janela enquanto Maria começou a se despir", estou narrando uma ação no presente, mesmo usando tempos verbais no passado. O leitor já está acostumado com isso, então tentem manter só um tempo verbal dentro de cada cena, ou seu risco de fazer algo que um editor vai achar "errado" (e descartar seu livro...) é muito grande!

Daniele Ribeiro disse...

Olá, Lobão.
Preciosas dicas, como sempre!

Bem, devo comentar que comecei a escrever meu livro em meados do ano passado e já percebo que meu estilo de escrita mudou um pouco. Chego a achar que a narrativa está ficando um pouco informal, se aproximando mais do leitor. Isso tem sido uma preocupação já que tenho medo de exibir cenas com narrativas desdoantes entre si.

Quanto ao foco da narrativa, estive pensando na possibilidade de usar dois focos distintos (dos dois personagens principais) alternadamente, mas tenho medo de bagunçar a cabeça do leitor com tanta alternância. Uma opção seria escrever em dois blocos separados, mas isso impediria uma narração com pontos de vistas simultâneos dos fatos.

Um recurso que tenho pensado em utilizar, acrescido à ideia de dois pontos de vista em 3a pessoa, é o do Diário para que seja possível fazer uma narrativa mais pessoal e subjetiva dos fatos. Será que faria confusão demais?

Abraço!

Alexandre Lobão disse...

Oi Jolie,
Acredito que tudo depende de como você vai colocar estas ideias no papel.
"O Nome da Águia", meu penúltimo romance, tem dois pontos de vista em duas tramas no presente, mais uma terceira trama que mostra fatos conectados no correr da História; e até hoje ninguém me reclamou de ser pouco claro.
A ideia do diário é boa, há vários escritores que usam este recurso. Estou ouvindo agora o livro "Children of the Mind", de Orson Scott Card, onde ele chega a ter três tramas paralelas, que por momentos se dividem em quatro ou cinco subtramas; e cada capítulo começa com um trecho de um "diário" de uma personagem que não aparece neste livro, só no livro anterior da série. E, como falei, estou ouvindo (e não lendo) e nunca cheguei a perder o fio da meada, pois o autor conduz as diversas tramas e pontos de vista com maestria!