á mais biografia nas obras de ficção que realidade nas biografias.
A frase não é minha, e não vou lembrar de quem é, mas a repito aqui porque realmente acredito nisso. Até porque, a meu ver, você só consegue escrever, ou pelo menos você só consegue escrever bem, a respeito daquilo que conhece.
Apenas como ilustração, estou lendo "On Writing", de Stephen King, e ele conta que após ter a ideia central da história "Carrie, a estranha", escreveu uma primeira versão de poucas dezenas de páginas, não acreditou na história, não se envolveu com os personagens, e a jogou fora. Tabitha, sua esposa, pegou o original do lixo, leu e devolveu ao escritor, dizendo que a história era boa. King só conseguiu escrever a história, que se tornou seu primeiro sucesso, depois de se aprofundar em todas as lembranças que tinha de colegiais oprimidas pelas amigas em sua época de highschool (o nosso ensino médio), inclusive visitando antigas colegas de classe para conhecer mais sobre suas vidas. Mais impressionante que isso é saber que ele escreveu "O Iluminado", cujo protagonista era um escritor alcoólatra, em uma época em que era viciado em álcool, mas que ele só percebeu todas as semelhanças entre personagem e autor anos depois.
A ficção, portanto, nasce de nossas experiências pessoais, sejam elas reais ou apreendidas de livros. Podemos até ampliar esta frase para incluir experiências capturadas de outras mídias, como TV, cinema, quadrinhos e internet, mas acredito que as experiências recebidas dos livros se aprofundam mais em nosso inconsciente (e portanto são mais úteis aos escritores), dadas suas características únicas como maior detalhamento da história e o tempo que levamos para lê-los. |
Devo confessar que a Luciana me colocou em uma situação complicada: não há resposta fácil para esta questão, até porque há muitas respostas possíveis, e muitos assuntos correlatos que merecem ser aprofundados. Vou tentar tocar em diversos pontos que podem interessar aos escritores de textos não-biográficos, e podemos aprofundar para um ou outro lado conforme vocês desejem.
- Já coloquei meu primeiro ponto: realidade e ficção se misturam, e biografias ou histórias "reais" são sempre versões parciais, até porque apreender toda a realidade não é possível. Desta forma, não se prenda aos fatos nem tenha medo de "estar mentindo", dê-se à liberdade de incluir ou excluir detalhes que darão um pouco mais de "cor" à sua história. O importante, a meu ver, é passar a emoção que você sentiu em determinado lugar ou momento, e se para isso for necessário incluir um sorriso fictício de um transeunte, um grito pela janela que nunca ocorreu ou um passeio que aconteceu apenas em sua imaginação, faça-o!
- Outro ponto essencial, na verdade o mais importante, é decidir para quem você está escrevendo seu livro. Para leitores em geral? Para a família? Para a crítica literária? Livros de "entretenimento" precisam ser mais leves, e são necessariamente sintéticos: tudo o que ocorre precisa contribuir para a trama. Já livros da "grande arte", como 2666, de Roberto Bolaño ou Ulisses, de James Joyce, são cheios de desvios, flutuações que não contribuem para a trama evoluir, e mesmo a trama é difusa. Já li biografias muito boas (como as de Chatô e de Steve Jobs) e outras, menos profissionais, onde o autor se perde em descrições da família, filhos, tios, pessoas que não contribuem para a história mas que, se fossem "deixadas de fora", ficariam ofendidas. Assim, se você vai escrever para a família, coloque assuntos que interessam à família, assuntos com os quais as pessoas se identificarão e sorrirão lembrando momentos em comum; se for escrever para leitores em geral, não tenha medo de cortar tudo o que não for realmente interessante.
- Pesquise! Da mesma forma que na ficção, a pesquisa é essencial em histórias reais, até mais. Não se fie em sua memória: descubra fotos antigas, mapas, cartas, diários; converse com pessoas, desenterre fatos. Se você está viajando ou pretendendo escrever algo sobre um momento atual de sua vida, comece coletando fotos, informações de jornais, tudo o que o cerca, para quando for escrever ter todo o material à mão. Mantenha um diário, não se preocupando em torná-lo extenso ou completo, mas apenas registre frases soltas, indicando emoções e lembranças que valham à pena. Algo como: "Zoológico de Bern - urso com "v" branco no peito brinca na água, crianças riem e dão tchau. Sorrio, sinto que todas crianças do mundo são iguais; lembro das crianças famintas no Sudão e meu sorriso some, imagino que ter informação é bom, mas ignorância por vezes é uma benção."
- Obviamente, você terá dificuldades em "encaixar" um livro real em uma estrutura de narrativa (assunto recorrente aqui no blog, procure por "estrutura" para saber mais). Mas acredito ser essencial procurar dar um senso de fechamento à obra, e pensar em uma boa abertura também. Comece o livro por uma parte emocionante, para cativar o leitor logo de cara, e inclua detalhes e motivações para mostrar que o protagonista está atrás de um sonho, e conclua com ele atingindo - ou não - este sonho, seja ele fazer um doutorado de linguística na Suíça ou vencer a esterilidade e ter um filho. Procure também um "fio da meada", algo para dar uma unidade às diferentes histórias. Por exemplo, em meu "Amar é simples e necessário", auto-biográfico que está em uma gaveta "curtindo um tempo" e esperando pela minha revisão, o fio da meada era o Amor (em todas as histórias o protagonista aprende algo novo sobre o amor); e a abertura e a conclusão acontecem quando o personagem-autor passa muito perto da morte, e além do aprendizado com a experiência, sente que precisa passar seu aprendizado adiante - e escreve o livro.
- Leia biografias, e atente para os detalhes. Isso vale para livros de ficção também. Você quer escrever um livro de suspense? Leia alguns livros de Stephen King e descubra como ele faz para gerar suspense em suas obras. Quer escrever biografias ou algo semelhante? Leia as obras de Fernando Morais, que com certeza terá excelentes ideias.
O mais importante de tudo, seja escrevendo obras de ficção ou baseadas na realidade, é levar a sério o que você vai fazer. Seja profissional. Você pode ser politicamente incorreto ou não, pode se apegar a fatos ou a emoções, pode querer escrever apenas para os amigos ou com vistas a uma publicação no mercado, mas leve a sério o trabalho como escritor. É um trabalho divertido, desafiador, e bem mais interessante do que a maioria dos trabalhos que você fará em sua vida, mas lembre-se: é um trabalho.
Se desde o início você não tiver certeza de que quer criar algo completo, quer concentrar suas energias para começar, evoluir e terminar seu trabalho, para que perder tempo? Desligue o computador e saia para tomar um sol, brincar com seus amigos, filhos ou netos, viver a vida. Aproveite seu dia (Carpe diem!), faça cada momento valer à pena, crie para si uma história que valha à pena ser vivida.
E então, quem sabe um dia, você retorne para contá-la para nós! |
Um comentário:
Muito bom o post.
Esclarecedor e encorajador !
Parabéns !
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