20 de dezembro de 2020

Como organizar as tramas para escrever romance ou roteiro de audiovisual - e evitar o bloqueio de escritor!

Aristóteles, em seu Poética, estabelecia algumas regras essenciais até hoje para a organização da trama de uma história

E

screver um romance ou roteiro de longa-metragem é um esforço que, além de vontade, demanda persistência do escritor. Serão semanas, ou provavelmente meses, de trabalho para conseguir chegar à primeira versão da obra - isso sem contar as inúmeras revisões que serão necessárias para fazê-la chegar na versão pronta para ser mostrada a outras pessoas.

Provavelmente a dificuldade de se manter motivado é o que faz com que a maioria dos escritores de primeira viagem abandonem a empreitada antes da sua conclusão, mas aliado a esta, e tão danosa quanto, é a dificuldade de se organizar para uma obra desta monta.

Mas exatamente o que significa se "organizar" para escrever um livro, e como fazer isso?

Por que se organizar para escrever um livro? E o que organizar?

Sendo bem claro: se a história não cabe inteira em sua cabeça, incluindo cada uma das tramas em separado e os perfis de cada personagem, suas motivações e ações dentro de cada trama, então você precisa se organizar.  

E lembre-se que estes detalhes todos precisam estar em sua mente o tempo todo da escrita, com as tramas e personagens evoluindo a cada página escrita.

Imagine, só para complicar, uma situação comum na vida de qualquer escritor: no meio do livro, você sai de férias, ou tem algum problema qualquer que o impede de escrever por duas ou três semanas... Na volta, como lembrar de tudo o que estava acontecendo?

Além desta questão, a organização das tramas e personagens e é essencial para oferecer ao escritor uma visão geral da história que ele está escrevendo, e de qual o papel de cada personagem nesta história.  Sem esta organização, a história fica à deriva, hora indo para um lado, hora para outro, o que pode ser exatamente o que um autor experiente deseja fazer - mas que em autores iniciantes gera a sensação de que ela não está avançando, o que acaba desembocando em um dos maiores motivos para o bloqueio de escritor: não saber como continuar. 

Mas como é que se faz, afinal, esta organização?

Para que servem as tais "ferramentas para organizar a trama" (e personagens)

Já escrevi diversos artigos sobre como elaborar personagens mais interessantes, e posso voltar ao tópico se lhes interessar (comentem!), então para tornar este artigo mais centrado, vou focar em algumas ferramentas de apoio à organização das tramas.

Antes de começar, só gostaria de reforçar o que sempre falo: As ferramentas existem para o escritor, não o escritor para as ferramentas. Não existe uma "ferramenta mágica" que vai dar um caminho perfeito para escrever uma história nem resolver as suas dificuldades criativas do autor; as ferramentas são meramente instrumentos para ajudar a tirar o máximo do seu potencial. São trilhas, que podem ser seguidas ou não, mas que dão um rumo, e nunca trilhos, que amarram o autor em uma forma padrão de trabalho. Escrever é uma atividade criativa, portanto cada escritor vai ter sua forma particular de fazê-lo.   

Um segundo ponto, tão ou mais importante que esse, é que em pelo menos um ponto crucial a profissão de escritor se assemelha em muito a qualquer outra, seja associada às artes ou não: quanto mais estudar, quanto mais praticar, melhor é o resultado do que se escreve. Parece óbvio - e realmente é! - mas há ainda muitos escritores que acham que se estudarem uma técnica qualquer de escrita, estarão "limitando a sua criatividade", "engessando sua forma de escrever" e outras coisas do gênero. Este preconceito é muito comum na América Latina como um todo, e confesso que ainda não consegui entender porque, já que aceitamos muito bem as universidades para todas as outras Grandes Artes. Se algum de vocês tiver alguma teoria a este respeito, adoraria ouvir!

E como são estas ferramentas?

Depois de falar tanto, corro até o risco de ser anticlimático ao listar algumas ferramentas, até porque elas parecem óbvias demais. Mas este é exatamente o ponto: elas parecem óbvias justamente porque fazem sentido!  Simplesmente, são formas de você fazer formalmente, conscientemente, algo que você já fazia sem registrar, fazia só de cabeça, inconscientemente. E ao explicitar o conhecimento, ele sempre se torna mais fácil e mais garantido de ser utilizado.

O primeiro ponto, central a todas as tramas, é o conflito. Toda história é sobre ALGO que aconteceu a ALGUÉM. Sem este "algo", o conflito que vale uma história, você não tem uma história. Já repeti mil vezes esta frase aqui, mas não tem como não repetir a frase de John Le Carré, escritor britânico famoso por seus romances de espionagem, falecido em dezembro de 2020:


“O gato deitou no tapete não é uma história, mas o gato deitou no tapete do cachorro, sim” 


Estando bem claro que uma história é sobre um conflito, há dois pontos cruciais que dividem a história em três partes, como já estabelecia Aristóteles em seu "poética", há cerca de 3.000 anos: Começo, meio e fim. Mais tarde, estes pontos (e outros pontos onde a história muda de rumo) foram batizados de pontos de virada.

Simples demais?  Pois é! Simples demais, mas ainda assim muita gente não segue isso...  

Vamos detalhar em alguns passos, para que fique claro como isso pode útil como ferramenta de escrita. 

  1. Pense no conflito. Para isso, é claro, você precisa estabelecer também quando a história ocorre, onde ela ocorre, quem é o protagonista e quem (ou o quê, no pior dos casos...) será o antagonista.  Registre isso em frases curtas, para ficar bem claro para você mesmo se esta é uma história que vale a pensa ser contada, e também se é a história que você quer contar.
  2. Início da história: Pense em como é a vida do protagonista ANTES de começar o conflito. Esta parte é geralmente curta, entre 5% e 10% do tamanho total da história. É aqui que o leitor vai se interessar pelo protagonista e conhecer seus valores e sua meta de vida. Escreva algumas linhas descrevendo sucintamente (isto é para você, não para o leitor) este status quo inicial.
  3. Ponto de virada inicial: Pense em como o conflito aparece na vida do personagem, qual o primeiro sinal de que a vida dele mudou ou vai mudar. É aqui que o lobo aparece na história, por exemplo. Anote uma frase curta indicando exatamente o que acontece.
  4. Meio da história: Pense brevemente em tudo o que o personagem vai passar com a mudança ocorrida, registrando em frases curtas cada uma das etapas de sua história.  Há muitas possibilidades que podem ajudar nesta parte, como por exemplo:
    • Para histórias centradas em personagem, algo semelhante aos cinco estágios do luto do modelo da psicóloga suíça Elizabeth Kübler-Ross:
      • O protagonista tentar negar a mudança e viver como vivia antes.
      • O protagonista tem raiva e luta para que a mudança não ocorra, faz ativamente força para que as coisas voltem ao que eram.
      • O protagonista tenta barganhar, ele aceita a mudança mas tenta reter algo de seu passado. 
      • O protagonista entra em depressão porque percebe que não tem como evitar o novo estado das coisas
      • O protagonista aceita o novo estado das coisas, e ou luta ativamente para se adaptar a ele, ou começa a revisar sua vida para ver o que mais precisa mudar para que se adapte.
    • Para histórias centradas na trama, pensar em outros pontos de virada como no modelo da Jornada do Protagonista, que descrevo com mais detalhes n'A Bíblia do Escritor
      • 10%: Aparece o conflito. 
      • Personagem não acredita, ou simplesmente não aceita que a mudança é necessária, e tenta continuar com sua vida - ainda que fique cada vez mais claro que isso não será possível.
      • 25%: Algo ocorre que personagem é obrigado a seguir em frente.
      • O protagonista continua reticente, sempre buscando formas de retornar ao status quo inicial.
      • 50%: Protagonista percebe que não pode mais retornar
      • A aceitação faz com que o protagonista mude sua postura e tente buscar soluções mais ativas para conflito.
      • 75%: Personagem percebe que não há soluções paliativas, precisa mudae de estratégia e resolver o conflito de vez.
      • Personagem enfrenta grandes riscos porque a estratégia de confronto direto é a mais perigosa.
      • 90%: O conflito é resolvido 
  5. Ponto de virada final: Pense em como o conflito termina. Se um lobo apareceu no passo três, ele tem que ser morto, ou sua ameaça neutralizada definitivamente de uma forma mais positiva (de repente, ele se torna vegetariano...). Novamente, uma frase curta em suas anotações vai lhe lembrar como você vê o conflito sendo resolvido.
  6. Fim da história: Pense em como será a vida do protagonista DEPOIS de resolver o conflito. Esta parte é geralmente curta, entre 5% e 10% do tamanho total da história. É aqui que o leitor vai saber como passar por toda a história realmente transformou o personagem, seu valores e sua meta de vida. Da mesma forma que nas etapas anteriores, escreva sucintamente como será este status quo final.

Se você fizer tudo isso direitinho, ao fim deste planejamento você terá algumas poucas páginas com tudo o que de realmente importante acontecerá em sua história. Ainda que você não siga suas anotações porque alguma ideia melhor apareceu no caminho, você terá um guia seguro para continuar escrevendo, pois ao saber aonde vai, você não se perderá, nem ficará bloqueado por falta de ideias.

Uma segunda ferramenta, igualmente interessante e simples, é criar um outline de seu texto. O termo, comum entre roteiristas de audiovisual, se refere a uma lista de frases curtas, uma linha cada, que descrevem brevemente cada cena.  A grande vantagem do outline é que você terá uma visão completa de sua obra antes de começar realmente a escrevê-la, e se não gostar, basta jogar 90 ou 120 linhas de texto fora e começar de novo.

Uma outra vantagem desta ferramenta é que ela atende também àqueles escritores que "não gostam de usar ferramentas". Se você não quer pensar em conflito, não acha interessante organizar a história em começo, meio e fim, e nem quer saber o que são pontos de virada, ainda assim você poderá escrever um outline para "validar" sua ideia antes de começar, perdendo assim apenas algumas dezenas de linhas, ao invés de algumas dezenas de páginas, caso perceba que a ideia não era tão boa assim, ou caso decida dar um novo rumo às coisas no meio da história. Lembro que o outline é uma trilha, não um trilho, então pode ser mudado e reescrito a qualquer ponto, conforme novas ideias surjam no correr da escrita.

Bom, espero ter ajudado a organizar algumas ideias, mas se algo não ficou claro, comente ou entre em contato, que sempre estou à disposição para esclarecer e ajudar colegas de profissão!

E você, usa alguma técnica específica para organizar suas histórias antes de começar a escrevê-las? Comente e compartilhe com os colegas escritores, pois com uma comunidade forte todos crescemos! 



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2 comentários:

Carlos Sposito disse...

Super explicado. Claro como água!

Alexandre Lobão disse...

Obrigado, Sposito. Tendo sugestão para algum tema, pode falar!