12 de dezembro de 2020

Para que servem arquétipos na construção de personagens?

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uito se fala sobre a Jornada do Herói e dos arquétipos que fazem parte dela, que muitas vezes são vendidos como uma "solução milagrosa" para criar grandes histórias: Crie a trama baseada na Jornada do Herói, defina os personagens seguindo os arquétipos e voilá!

Se você detectou uma ironia explícita, não é a toa: não acredito em fórmulas ou "soluções milagrosas" para escrever livros ou roteiros de obras audiovisuais. Pense bem: se houvesse uma solução mágica, nunca veríamos filmes de orçamentos multimilionários naufragarem nas bilheterias.

Mas então para que servem a Jornada e seus arquétipos?

Uma breve visão da utilidade da Jornada do Herói

Vale lembrar que a origem da Jornada do Herói foi uma análise realizada pelo psicólogo Joseph Campbell de um grande conjunto de mitos ancestrais e histórias mais recentes, a partir da qual ele chegou à conclusão de que todos os mitos seguem uma mesma estrutura narrativa, a que ele chamou de "monomito". Esta estrutura de 17 passos (mencionada no livro O Herói de Mil Faces) foi posteriormente adaptada por Christopher Vogler para a "Jornada do Escritor", uma versão de 12 passos utilizada pelo autor para permitir uma abordagem sistematizada na revisão de roteiros da Disney, onde ele trabalhava na época. 

É importante reforçar que a ideia de Vogler nunca foi (e ele reforça isso em suas palestras) usar a Jornada do Herói como um esquema para criar estruturas para histórias, e nem mesmo para reforçar, na revisão, a inclusão de todos os passos nos roteiros revisados, mas apenas como uma ferramenta de apoio para esta revisão, uma base de comparação para verificar se o roteiro avaliado poderia ser de alguma forma melhorado com a inclusão de algum destes passos.

O que são arquétipos, e quais fazem parte da Jornada do Herói

A palavra arquétipo vem da junção de duas palavras em grego, indicando "tipo" ou "marca" (arché) "inicial" (tipós), usada originalmente para indicar uma placa com relevos a partir da qual se realizavam impressões em pratos e objetos de cerâmica. Posteriormente, o termo foi utilizado por filósofos gregos para denominar as "ideias originais" a partir da qual todas as coisas eram derivadas - por exemplo, todos os cavalos do mundo seriam representações do arquétipo / ideia original de o que seria um cavalo perfeito.

Quando analisando os mitos que deram lugar à hipótese do monomito, com foco mais no estudo psicológico das personalidades envolvidas na jornada Campbell levantou oito arquétipos:  

  • Herói: O protagonista da história que se vê obrigado (pois faz isso reticentemente) a sair de sua vida normal e enfrentar um novo mundo, e que tem por missão enfrentar perigos mortais para trazer de volta a seu mundo um prêmio, uma recompensa, que potencialmente salva o mundo. Em nível psicológico, representa o leitor e a sua transformação é um rito de passagem para a maioridade, um aprendizado de vida. 
  • Mentor: O sábio que orienta o herói em sua jornada, e que representa a figura que o herói pode vir a ser um dia. É a imagem do pai que ensina e motiva, e morre durante a jornada do herói para dar espaço para que o herói se torne seu próprio mentor.
  • Guardião de limiar: É o que protege as entradas do novo mundo daqueles que não têm valor, e serve para testar a capacidade e o comprometimento do herói. Pode ser vencido ou transformado em uma aliado. Em termos psicológicos, representa as dificuldades interiores, os medos e as incertezas do herói.
  • Arauto: É aquele personagem (ou elemento) que anuncia a mudança por vir e os desafios a serem superados. Internamente, é a motivação do herói em conhecer e buscar superar as mudanças.
  • Camaleão: É o personagem, geralmente do sexo oposto ao do herói, que tem personalidade instável ou mutável.  Psicologicamente, é aquele que trás dúvidas e suspense, sendo por isso um catalisador de mudanças no herói. 
  • Aliado: O aliado geralmente é uma alma gentil, inocente, que enfrenta a jornada lado a lado com o herói, e que em algum ponto desiste ou desaparece, apenas para reaparecer em um momento crucial e salvar o dia. Na psicologia, representa o lado humano do herói, que traz reflexões que o lembram de como ele era antes de perder a inocência, e de como são as pessoas que ele está lutando para salvar.
  • Sombra: São personagens que, ainda não se auto identificando como "maus", enfrentam o herói na busca de evitar que ele atinja seu objetivo. Na narrativa, são instrumentos que fazem com que o herói cresça e dê o máximo de si, no lado psicológico representam as próprias dificuldades internas do herói, como suas culpas e traumas.  
  • Pícaro: Os pícaros são aqueles personagens que veem a sociedade de fora, mostrando seus pontos fracos e fazendo piada deles. Servem para mostrar os erros do herói e trazê-lo de volta à realidade, quando ele começa a se achar muito importante, sendo catalizadores de transformações de uma maneira positiva. Nas histórias servem como alívio cômico após momentos de grande tensão, e internamente representam o lado do próprio herói que questiona tudo, inclusive a si mesmo e as suas crenças.

Para que servem os arquétipos na escrita de um livro

O grande poder dos arquétipos é que eles falam diretamente ao subconsciente do leitor, e com isso reforçam a credibilidade do personagem e permitem que, com poucas palavras, o leitor saiba o que esperar de um determinado personagem.

Isto não quer dizer que seus personagens devam sempre seguir determinados arquétipos, muito pelo contrário: você deve pensar em termos de arquétipos quando definindo seus personagens justamente para ter ideias sobre quais arquétipos podem ser seguidos mais fortemente e quais arquétipos podem ser utilizados apenas para reforçar ao leitor que seus personagens são reais, diferentes de todos os demais.   

Por exemplo, ao aparecer na narrativa um velhinho com longas barbas, o leitor já vai associá-lo, pela aparência física, com um mentor. Agora, se este personagem dá um conselho bom para cada três ou quatro conselhos ruins, logo o leitor vai perceber que ele não segue aquele modelo, sendo talvez um pícaro ou mesmo um sombra.

Vale lembrar, ainda, que há muitíssimos mais arquétipos que os oito sugeridos por Campbell: A velhinha bondosa, a mãe dedicada, o executivo obstinado, o político corrupto... Pesquise na internet e você terá uma lista imensa de ideias arquetípicas, que já fazem parte do imaginário popular brasileiro ou internacional. 

O maior cuidado que você deve ter quando utilizando arquétipos para dar corpo aos seus personagens é não justamente seguir exatamente o que o leitor ou a plateia espera deles, porque senão eles se tornam estereótipos, e a obra inteira corre o risco de se tornar repetitiva e enfadonha.  

A grande vantagem de pensar em arquétipos, quando elaborando seus personagens, é que eles oferecem uma forma estruturada para se pensar em figuras recorrentes em histórias que já se encontram no subconsciente coletivo do leitor. 

Ao criar um personagem, crie um esqueleto a partir de um arquétipo, conforme a função que o personagem terá na história; e a partir daí preencha este esqueleto com músculos, pele e outros adereços de forma a torná-lo uma pessoa real, onde o leitor não verá um arquétipo, mas um conjunto de características que compõe um verdadeiro ser humano.

Para concluir, vale mencionarmos uma divertida e instrutiva frase de Christopher Vogler, brincando com arquétipos e etapas da Jornada do Herói:


“Escrever é muitas vezes uma jornada perigosa. Baixa autoestima ou confusão podem ser a Sombra que congela o seu trabalho, um editor ou seu lado autocrítico pode ser o Guardião do Limiar que bloqueia seu caminho. Acidentes, problemas de computador e falta de tempo e disciplina podem nos atormentar e provocar como Pícaros. Sonhos pouco realistas de sucesso ou distrações podem ser Camaleões que nos tentam, confundem e deslumbram. Prazos de entrega, decisões editoriais e a luta para vender seu trabalho podem ser os Testes e Desafios que fazem parecer que morremos, mas Ressuscitamos para escrever novamente” 


Espero que tenha ficado claro como você pode utilizar arquétipos como base para criar personagens melhores; mas se não, já sabe - Comente, pergunte, que estamos aqui para isso!

E você, já usou arquétipos para criar personagens? Tem alguma dica? Comente e compartilhe com os colegas escritores!



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