Amigos!
Aqui vai a última parte do conto "Cila", na verdade o capítulo 2 do livro em que estou trabalhando, "As Incríveis Memórias de Samael Duncan" (título provisório).
Quem leu ate agora sem comentar, este é um bom momento!
No próximo post: Concurso com sorteio de livros e camisetas, aqui e no twitter! Fiquem ligados!
Sair de Veneza naquele dia foi uma das coisas mais penosas que já fiz na vida, quase tão difícil quanto deixar Caterina partir anos antes, naquele nublado dia de março, no início de uma primavera que não florescia em meu coração.
Com um nó na garganta, vi a cidade sumir rapidamente no horizonte dos trilhos da ferrovia.
Adolf Hitler era ainda um promissor estadista indicado ao prêmio Nobel da Paz, e a Europa sufocava angustiada com a recessão continuada desde o fim da Primeira Grande Guerra - que eventualmente seria o estopim da Segunda - quando finalmente pude retornar a Veneza. Cerca de sete anos haviam se passado desde a última vez que encontrara com Cila.
Desci do trem no bairro de San Marco e corri para a hospedaria mais próxima, onde acertei o pagamento com o anfitrião, deixei as malas e aluguei uma bicicleta para chegar mais rápido até o Lido.
Quando passei pelo rio Dei Greci, meu coração saltava pela boca, mais pela emoção do que pelo esforço de desviar dos pedestres em alta velocidade.
Encostei a bicicleta no portal quebrado da casa, e entrei quase correndo, chamando seu nome, esquecendo o cuidado com as tábuas apodrecidas.
Com medo do que poderia achar, sofreei o passo à medida que descia as escadas. Minha voz chamava seu nome quase em um sussurro, como se receasse acordar algum sonho perdido na penumbra do andar de baixo.
Com a água suja subindo até a barriga, andei até a mesa próxima à janela onde Cila usualmente ficava.
Na luz do fim do dia, vi sobre a mesa um pequeno colar de prata, com um pingente em formato de concha no qual se viam três entalhes de símbolos que não consegui identificar. Sob o colar, uma folha amarelada coberta de poeira deixava entrever uma mensagem escrita com letras firmes e assinada elegantemente.
“Caro Samael,
Quebrei minha promessa, mas imagino que Fabrício teria aprovado. Agora que me sinto forte retornarei ao meu povo.
Deixo aqui um presente que é um símbolo de nossa amizade: carregue-o com você, e sempre que precisar de meu povo, alguém estará por perto para ajudá-lo.
Cila.”
Entre feliz pela decisão dela e decepcionado por não mais poder ouvir sua voz, coloquei a mensagem no bolso e o colar no pescoço, desejando sair logo daquele lugar que, apesar de me trazer boas lembranças, tinha um certo tom lúgubre na penumbra crescente da noite.
Na minha pressa, a meio caminho da escada escorreguei em algo e afundei de uma vez na água escura. Levantei sobressaltado, e, estranhando a quantidade de obstáculos naquele canto da sala, afundei um braço e alcancei o objeto que provocara meu tropeço.
Assim que percebi que havia pegado um osso de uma pilha de restos humanos, lancei-o para o lado e, transido de medo e por um súbito frio, corri para a salvação dos degraus que se projetavam para o andar superior, a poucos metros de distância.
Corri de bicicleta até não agüentar mais, e só então parei para respirar. O amuleto pendia sobre meu peito arfante, zunindo suavemente na quase escuridão do início de noite.
Nunca mais vi Cila, mas mesmo agora, quando olho pela minha janela para o mar distante, pareço ouvir o eco de sua voz no som das ondas quebrando na praia.
Estranhamente, termino de escrever e ainda me sinto cheio de energia, como se a lembrança das aventuras passadas pudesse realmente trazer sangue novo às minhas veias.
Sorrindo, tiro a bengala do colo e a levo ao chão. O baque surdo faz a enfermeira levantar os olhos de sua indefectível revista e se aproximar.
- O senhor deseja se levantar? Precisa de ajuda?
Olho para ela, depois para a bengala que se apóia no assoalho de madeira, e finalmente para minhas mãos, que após soltarem a pena voltam a tremer ligeiramente.
- Não, querida. Só estou treinando. Quem sabe amanhã?
Ela sorri para mim, como querendo me encorajar. Sorrio de volta. Estico a mão até uma pequena gaveta sobre a mesa onde escrevo, uma gaveta que eu não abro desde 1988, após o incêndio que destruiu meu quarto. Em um gesto automático, puxo de lá um colar e o coloco no pescoço.
No meu peito, o talismã em forma de concha parece pulsar em ressonância com as ondas distantes, como que desejando bombear uma nova vitalidade para meu sangue envelhecido. Mas, como boa parte das minhas lembranças a respeito de Cila, isso também pode ser produto da minha imaginação.
Repito em voz baixa, como um mantra direcionado mais para mim do que para a enfermeira, que me ouve atenta.
- É!... Quem sabe amanhã...
Pesquisar este blog
19 de maio de 2010
Convite - Encontro com a Casa de Autores
Prezados(as)
A Arco Iris Distribuidora de livros, em parceria com a associação das editoras Berlendis&Vertecchia, Biruta, Mercuryo Jovem, Nova Alexandria, Panda e Peirópolis. Convida sua escola (coordenadores, professores, alunos, adultos em geral) para participar do 1º encontro dos autores do Grupo.
Após as palestras um bate-papo descontraído e troca de experiências entre público e escritores.
Segue o convite abaixo.
Para confirmar sua presença você pode responder por e-mail.
Informações: (61) 3244-0940 – (61) 9966-0441 – (61) 9966-0523 – (61) 8473-6816
Vagas limitadas.
Os livros dos autores estarão à venda no local.
Até lá !!!
12 de maio de 2010
As incríveis memórias de Samael Duncan - Cila, Parte III
Continuando com a pausa nas dicas para escritores, segue a terceira parte do capítulo 2 do livro em que estou trabalhando.
Estou publicando apenas para seguir o prometido. Semana difícil, depois falamos disso.
Cila – este era o nome dela – era uma velha senhora que vivia naquela casa abandonada. Quando entrei no primeiro andar da casa, naquele primeiro dia, não pude deixar de me espantar com a sua figura impressionante. Os cabelos, embora totalmente brancos, eram incrivelmente lisos e brilhantes mesmo à luz da vela, penteados com algum cuidado em uma grande trança que caía sobre seu ombro esquerdo. O rosto, que deveria ter sido incrivelmente belo, deixara a decadência da velhice amarelar não apenas a pele, mas também os olhos, embora as íris azuis ainda fossem claras e vivazes, e pareciam ter um estranho movimento que recordava dos mares da minha infância na Escócia. Suas roupas, rotas, deixavam denotar um grande e antigo luxo, derrotado, como ela, pelo tempo. Mas o que realmente deixou-me espantado foi como a encontrei: sentada por detrás de uma mesa, com a água pouco acima da cintura e um grande livro iluminado por um toco de vela assentado em um pequeno candelabro enferrujado, ela me olhava como se eu fosse um intruso em sua pequena mansão, um visitante incômodo que estava ali apenas para perturbar a sua tranqüilidade. Totalmente sem jeito pelo olhar que parecia me despir, não tive nem mesmo coragem de perguntar o que a velha senhora fazia dentro d’água, apenas gaguejei um cumprimento quase desconexo. Se bem me lembro, algo como: “Olá... Meu nome é Samael... Eu... Desculpe, eu não queria incomodar!”. A gargalhada da estranha mulher arrepiou-me não por ter nada de assustador, mas justamente pelo contrário: todo meu corpo sentiu a força de seu divertimento com meu embaraço, como se fosse eu, e não ela, quem estivesse a rir. Uma onda de tranqüilidade e felicidade me inundou. “Olá, Samael! Venha, aproxime-se! Você não está incomodando, oh não, Deus sabe que não! Meu nome é Cila!” Tentei parecer natural enquanto caminhava com água até a cintura, enquanto ela continuava falando com aquela voz que tinha estranhos efeitos sobre mim. Lembro exatamente de suas palavras: “Você me lembra meu querido e falecido marido, Fabrício! Como ele era sem jeito, às vezes!”. Sem saber se me ofendia ou me divertia, sentei em uma das cadeiras submersas, tentando evitar uma careta enquanto a água fria subia pela minha barriga. Cila riu novamente, e desta vez não consegui resistir, e minha risada se uniu à sua. A partir daquele momento, nos tornamos amigos. Não caberia aqui listar todos os diálogos que tive com Cila, onde usualmente eu contava fatos do cotidiano, as novidades comentadas na feira, as maravilhas que eu parecia descobrir nos pequenos detalhes do mundo a cada dia; que ela entremeava com comentários que usualmente davam um brilho extra às minhas observações, ou com perguntas sobre pequenos detalhes que, muitas vezes, haviam me passado despercebidos. Sei apenas que simplesmente sua voz dava-me um prazer indizível, eu me sentia como se estivesse novamente apaixonado; como se, além de Cila, minha doce e saudosa Caterina também estivesse ali, rindo, conversando e se divertindo conosco. Durante mais de um ano adiei minha saída de Veneza, a pretexto de estar procurando por novos negócios, somente para estar ali com ela, para tentar entender um pouco mais daquela senhora que efetivamente vivia no primeiro e alagado andar de um prédio abandonado. Mas quase nunca falávamos sobre ela, que sempre conseguia desviar-se graciosamente de quaisquer perguntas sobre seu passado. Chegou o dia, porém, que não pude mais ficar por ali. Além dos afazeres de meu emprego de caixeiro viajante, meu sangue aventureiro começava a se incomodar por estar tanto tempo em um mesmo lugar. No dia da despedida, cheguei à casa de Cila com o coração pesado. Percebendo rapidamente meu estado de espírito, Cila segurou minha mão e olhou nos meus olhos. Com palavras que eu não saberia reproduzir, pois tinham mais sentimentos que sons, ela me disse que nunca poderia agradecer o suficiente pela felicidade que eu havia lhe proporcionado no último ano. E pediu que, se um dia eu retornasse a Veneza, não esquecesse de visitá-la. Apertei sua mão – cuja pele era extremamente macia, apesar da idade – e retribui o olhar. Neste momento, percebendo que o momento de intimidade abria uma porta, perguntei a ela, diretamente, por que vivia ali. Afinal, eu sabia que ela gostava do mundo “lá fora”. Cila soltou minha mão, como que ofendida por eu tentar invadir sua privacidade, mas com um suspiro sua expressão acabou por suavizar. Com seu jeito de escolher as palavras sempre perfeitas, ela me disse que há muito, muito tempo atrás, fizera uma promessa a Fabrício, seu falecido marido, que a obrigou a viver longe de seu povo. E disse-me que seria muito complicado explicar, mas que tampouco podia viver entre o povo de Veneza. Desta forma, só lhe restava ficar ali, naquele resto de casa, onde um dia havia vivido feliz com o marido. Ficamos muito tempo nos olhando sem saber como continuar aquela conversa. Finalmente, depois de não sei quantos intermináveis segundos em que Cila me suplicava com seu olhar que a tirasse da situação sem saída, suspirei, mordi os lábios e consegui falar alguma coisa: “Cila... Faz muito tempo que seu marido se foi?” Seus olhos se encheram de lágrimas quando disse que sim, fazia muito, muito tempo. “Desde o fim da ´Sereníssima´” foi o que ela falou, e só anos depois, ao estudar a história de Veneza, é que fui descobrir quanto tempo isso significava. Ela suspirou, baixou o rosto para o lado e viu seu reflexo nas águas, emoldurado pelos cabelos que, soltos, afundavam suas pontas na água escura do rio. “Cila,” - eu tive coragem de falar, algum tempo depois - “não sei exatamente qual foi sua promessa, mas se você a cumpriu durante toda a vida dele, deve ter sido suficiente. Precisa ter sido o suficiente. Tenho certeza que Fabrício, qualquer que tenha sido esta promessa, não gostaria de vê-la aqui, neste lugar, vivendo deste jeito”. Ela ainda olhava, entretida, o seu reflexo. Suas mãos puxaram parte do cabelo para trás, derrubando grossos fios de água pela parte seca de seu vestido e sobre a mesa. Parecendo delirar com seu reflexo, ela concordava comigo, com a voz soando como se estivesse longe dali. “É vero... Fabrício me amava! Ele não gostaria de me ver assim... Pareço uma velha! Esta promessa está me matando aos poucos!” Eu iria sorrir de seus delírios – afinal, ela era uma velha - mas a gravidade no tom de sua voz forçou-me a ficar sóbrio. Finalmente, Cila levantou seu rosto com um sorriso que poucas vezes eu vira naqueles últimos meses. Quando falou, sua voz soou forte e límpida, sem a rouquidão que eu havia acostumado a ouvir. Como uma antiga rainha que recobrasse sua realeza, ela indicou que eu partisse, que ela iria ponderar minhas palavras. Sorrindo, segurei novamente sua mão e a trouxe gentilmente até a boca, dando um suave beijo de despedida, agradecendo sua sincera amizade e confirmando que ali retornaria um dia para vê-la. Ao sair, ainda ouvi sua voz, soando mais como uma bênção do que como um desejo de despedida: “Buona ventura!”
Cila – este era o nome dela – era uma velha senhora que vivia naquela casa abandonada. Quando entrei no primeiro andar da casa, naquele primeiro dia, não pude deixar de me espantar com a sua figura impressionante. Os cabelos, embora totalmente brancos, eram incrivelmente lisos e brilhantes mesmo à luz da vela, penteados com algum cuidado em uma grande trança que caía sobre seu ombro esquerdo. O rosto, que deveria ter sido incrivelmente belo, deixara a decadência da velhice amarelar não apenas a pele, mas também os olhos, embora as íris azuis ainda fossem claras e vivazes, e pareciam ter um estranho movimento que recordava dos mares da minha infância na Escócia. Suas roupas, rotas, deixavam denotar um grande e antigo luxo, derrotado, como ela, pelo tempo. Mas o que realmente deixou-me espantado foi como a encontrei: sentada por detrás de uma mesa, com a água pouco acima da cintura e um grande livro iluminado por um toco de vela assentado em um pequeno candelabro enferrujado, ela me olhava como se eu fosse um intruso em sua pequena mansão, um visitante incômodo que estava ali apenas para perturbar a sua tranqüilidade. Totalmente sem jeito pelo olhar que parecia me despir, não tive nem mesmo coragem de perguntar o que a velha senhora fazia dentro d’água, apenas gaguejei um cumprimento quase desconexo. Se bem me lembro, algo como: “Olá... Meu nome é Samael... Eu... Desculpe, eu não queria incomodar!”. A gargalhada da estranha mulher arrepiou-me não por ter nada de assustador, mas justamente pelo contrário: todo meu corpo sentiu a força de seu divertimento com meu embaraço, como se fosse eu, e não ela, quem estivesse a rir. Uma onda de tranqüilidade e felicidade me inundou. “Olá, Samael! Venha, aproxime-se! Você não está incomodando, oh não, Deus sabe que não! Meu nome é Cila!” Tentei parecer natural enquanto caminhava com água até a cintura, enquanto ela continuava falando com aquela voz que tinha estranhos efeitos sobre mim. Lembro exatamente de suas palavras: “Você me lembra meu querido e falecido marido, Fabrício! Como ele era sem jeito, às vezes!”. Sem saber se me ofendia ou me divertia, sentei em uma das cadeiras submersas, tentando evitar uma careta enquanto a água fria subia pela minha barriga. Cila riu novamente, e desta vez não consegui resistir, e minha risada se uniu à sua. A partir daquele momento, nos tornamos amigos. Não caberia aqui listar todos os diálogos que tive com Cila, onde usualmente eu contava fatos do cotidiano, as novidades comentadas na feira, as maravilhas que eu parecia descobrir nos pequenos detalhes do mundo a cada dia; que ela entremeava com comentários que usualmente davam um brilho extra às minhas observações, ou com perguntas sobre pequenos detalhes que, muitas vezes, haviam me passado despercebidos. Sei apenas que simplesmente sua voz dava-me um prazer indizível, eu me sentia como se estivesse novamente apaixonado; como se, além de Cila, minha doce e saudosa Caterina também estivesse ali, rindo, conversando e se divertindo conosco. Durante mais de um ano adiei minha saída de Veneza, a pretexto de estar procurando por novos negócios, somente para estar ali com ela, para tentar entender um pouco mais daquela senhora que efetivamente vivia no primeiro e alagado andar de um prédio abandonado. Mas quase nunca falávamos sobre ela, que sempre conseguia desviar-se graciosamente de quaisquer perguntas sobre seu passado. Chegou o dia, porém, que não pude mais ficar por ali. Além dos afazeres de meu emprego de caixeiro viajante, meu sangue aventureiro começava a se incomodar por estar tanto tempo em um mesmo lugar. No dia da despedida, cheguei à casa de Cila com o coração pesado. Percebendo rapidamente meu estado de espírito, Cila segurou minha mão e olhou nos meus olhos. Com palavras que eu não saberia reproduzir, pois tinham mais sentimentos que sons, ela me disse que nunca poderia agradecer o suficiente pela felicidade que eu havia lhe proporcionado no último ano. E pediu que, se um dia eu retornasse a Veneza, não esquecesse de visitá-la. Apertei sua mão – cuja pele era extremamente macia, apesar da idade – e retribui o olhar. Neste momento, percebendo que o momento de intimidade abria uma porta, perguntei a ela, diretamente, por que vivia ali. Afinal, eu sabia que ela gostava do mundo “lá fora”. Cila soltou minha mão, como que ofendida por eu tentar invadir sua privacidade, mas com um suspiro sua expressão acabou por suavizar. Com seu jeito de escolher as palavras sempre perfeitas, ela me disse que há muito, muito tempo atrás, fizera uma promessa a Fabrício, seu falecido marido, que a obrigou a viver longe de seu povo. E disse-me que seria muito complicado explicar, mas que tampouco podia viver entre o povo de Veneza. Desta forma, só lhe restava ficar ali, naquele resto de casa, onde um dia havia vivido feliz com o marido. Ficamos muito tempo nos olhando sem saber como continuar aquela conversa. Finalmente, depois de não sei quantos intermináveis segundos em que Cila me suplicava com seu olhar que a tirasse da situação sem saída, suspirei, mordi os lábios e consegui falar alguma coisa: “Cila... Faz muito tempo que seu marido se foi?” Seus olhos se encheram de lágrimas quando disse que sim, fazia muito, muito tempo. “Desde o fim da ´Sereníssima´” foi o que ela falou, e só anos depois, ao estudar a história de Veneza, é que fui descobrir quanto tempo isso significava. Ela suspirou, baixou o rosto para o lado e viu seu reflexo nas águas, emoldurado pelos cabelos que, soltos, afundavam suas pontas na água escura do rio. “Cila,” - eu tive coragem de falar, algum tempo depois - “não sei exatamente qual foi sua promessa, mas se você a cumpriu durante toda a vida dele, deve ter sido suficiente. Precisa ter sido o suficiente. Tenho certeza que Fabrício, qualquer que tenha sido esta promessa, não gostaria de vê-la aqui, neste lugar, vivendo deste jeito”. Ela ainda olhava, entretida, o seu reflexo. Suas mãos puxaram parte do cabelo para trás, derrubando grossos fios de água pela parte seca de seu vestido e sobre a mesa. Parecendo delirar com seu reflexo, ela concordava comigo, com a voz soando como se estivesse longe dali. “É vero... Fabrício me amava! Ele não gostaria de me ver assim... Pareço uma velha! Esta promessa está me matando aos poucos!” Eu iria sorrir de seus delírios – afinal, ela era uma velha - mas a gravidade no tom de sua voz forçou-me a ficar sóbrio. Finalmente, Cila levantou seu rosto com um sorriso que poucas vezes eu vira naqueles últimos meses. Quando falou, sua voz soou forte e límpida, sem a rouquidão que eu havia acostumado a ouvir. Como uma antiga rainha que recobrasse sua realeza, ela indicou que eu partisse, que ela iria ponderar minhas palavras. Sorrindo, segurei novamente sua mão e a trouxe gentilmente até a boca, dando um suave beijo de despedida, agradecendo sua sincera amizade e confirmando que ali retornaria um dia para vê-la. Ao sair, ainda ouvi sua voz, soando mais como uma bênção do que como um desejo de despedida: “Buona ventura!”
5 de maio de 2010
As incríveis memórias de Samael Duncan - Cila, Parte II
Continuando com a pausa nas dicas para escritores, segue a segunda parte do capítulo 2 do livro em que estou trabalhando.
Vou publicar trechos maiores, então teremos apenas mais 2 partes depois desta.
Aceito críticas e comentários! :)
Veneza, Itália, verão de 1927. Caminho maravilhado pelos passeios da cidade. Meus olhos procuram detalhes, indo bem além da Piazza San Marco e da catedral de San Giorgio Maggiore, perdendo-se em becos estreitos e alamedas meio submersas, onde gôndolas e caponeras colorem as ruas outrora povoadas por cavalos e carruagens. Admirava-me o fato de os andares térreos de todos os prédios encontrarem-se parcialmente submersos, sendo o acesso realizado pelo primeiro andar; nível no qual se encontram as atuais calçadas e pontes. Em alguns pontos da cidade, mesmo o primeiro andar perigosamente se aproximava da água. O fim do longo dia me surpreende andando pela periferia da cidade, na Via de San Lorenzo, onde uma pequena feira que se estende até a Via Borgolocco vende peixes e frutas, além de delicados artesanatos em vidro criados por caprichosos sopradores e tecidos crus bordados por gordas matronas sorridentes. Procurando o caminho à hospedaria onde estava passando as noites, passei por uma casa abandonada e, ao cruzar uma estreita ponte sobre o que outrora provavelmente fora uma rua comercial, um ponto de luz me chamou a atenção. De cima da ponte, pude reparar que a luz bruxuleante de uma vela iluminava as vidraças meio cobertas pela água do andar térreo da antiga habitação. Movido por um estranho sentimento, como se algo me levasse a tal, retrocedi sobre meus passos e sem muita dificuldade adentrei na construção abandonada, cuja porta havia sido substituída por duas tábuas pregadas no batente, em um grande xis. O chão antigo rangeu perigosamente sob meus pés quando, buscando as partes mais sólidas, aproximei-me de uma escada de pedra que descia para o andar inferior. Com meu italiano arrastado, aprendido anos antes nos parreirais do sul da Itália, perguntei se havia alguém por ali. A resposta atingiu-me com uma força que não posso descrever, pois antes mesmo que meu cérebro entendesse a ordem para sair dali; minhas pernas já haviam começado a se mexer, como se tivessem vontade própria. Foi quase na porta de saída, com o coração aos saltos, que finalmente comecei a decifrar o que havia sido falado. Era um som estranho, conflituoso, que apesar de claramente ter sido dito apenas por uma pessoa, chegara a meus ouvidos como se duas vozes houvessem ordenado simultaneamente que eu saísse. No entanto, apesar de nenhuma palavra ter sido dita, eu sentia como se uma terceira voz tivesse me sussurrado aos ouvidos: “Ajude-me”. Foi esta terceira voz, apenas pressentida, que me fez cautelosamente retornar, parando novamente à beira da escada e falando, agora com um tom mais gentil, que eu não queria incomodar, mas oferecer ajuda. Novamente, a estranha voz veio do andar inferior, meio coberto de água. Mas desta vez pude perceber claramente que apenas uma voz falava, num tom quase rouco de velhice, mas que deixava entrever tratar-se de uma mulher: “Saia daqui! Não quero ajuda!”. E, embora as palavras fossem inequívocas, o tom de desespero na voz era agora ainda maior do que antes. Pedi licença e desci os negros degraus.
Veneza, Itália, verão de 1927. Caminho maravilhado pelos passeios da cidade. Meus olhos procuram detalhes, indo bem além da Piazza San Marco e da catedral de San Giorgio Maggiore, perdendo-se em becos estreitos e alamedas meio submersas, onde gôndolas e caponeras colorem as ruas outrora povoadas por cavalos e carruagens. Admirava-me o fato de os andares térreos de todos os prédios encontrarem-se parcialmente submersos, sendo o acesso realizado pelo primeiro andar; nível no qual se encontram as atuais calçadas e pontes. Em alguns pontos da cidade, mesmo o primeiro andar perigosamente se aproximava da água. O fim do longo dia me surpreende andando pela periferia da cidade, na Via de San Lorenzo, onde uma pequena feira que se estende até a Via Borgolocco vende peixes e frutas, além de delicados artesanatos em vidro criados por caprichosos sopradores e tecidos crus bordados por gordas matronas sorridentes. Procurando o caminho à hospedaria onde estava passando as noites, passei por uma casa abandonada e, ao cruzar uma estreita ponte sobre o que outrora provavelmente fora uma rua comercial, um ponto de luz me chamou a atenção. De cima da ponte, pude reparar que a luz bruxuleante de uma vela iluminava as vidraças meio cobertas pela água do andar térreo da antiga habitação. Movido por um estranho sentimento, como se algo me levasse a tal, retrocedi sobre meus passos e sem muita dificuldade adentrei na construção abandonada, cuja porta havia sido substituída por duas tábuas pregadas no batente, em um grande xis. O chão antigo rangeu perigosamente sob meus pés quando, buscando as partes mais sólidas, aproximei-me de uma escada de pedra que descia para o andar inferior. Com meu italiano arrastado, aprendido anos antes nos parreirais do sul da Itália, perguntei se havia alguém por ali. A resposta atingiu-me com uma força que não posso descrever, pois antes mesmo que meu cérebro entendesse a ordem para sair dali; minhas pernas já haviam começado a se mexer, como se tivessem vontade própria. Foi quase na porta de saída, com o coração aos saltos, que finalmente comecei a decifrar o que havia sido falado. Era um som estranho, conflituoso, que apesar de claramente ter sido dito apenas por uma pessoa, chegara a meus ouvidos como se duas vozes houvessem ordenado simultaneamente que eu saísse. No entanto, apesar de nenhuma palavra ter sido dita, eu sentia como se uma terceira voz tivesse me sussurrado aos ouvidos: “Ajude-me”. Foi esta terceira voz, apenas pressentida, que me fez cautelosamente retornar, parando novamente à beira da escada e falando, agora com um tom mais gentil, que eu não queria incomodar, mas oferecer ajuda. Novamente, a estranha voz veio do andar inferior, meio coberto de água. Mas desta vez pude perceber claramente que apenas uma voz falava, num tom quase rouco de velhice, mas que deixava entrever tratar-se de uma mulher: “Saia daqui! Não quero ajuda!”. E, embora as palavras fossem inequívocas, o tom de desespero na voz era agora ainda maior do que antes. Pedi licença e desci os negros degraus.
Assinar:
Postagens (Atom)